domingo, 3 de novembro de 2013

A libertação dos Beagles do Instituto Royal: uma ação revolucionária

No dia 18 de outubro de 2013, protetores e ativistas, mas antes de tudo, cidadãos indignados com o uso de Beagles em experimentos científicos pelo Instituto Royal em São Roque - SP, invadiram o prédio do Instituto e resgataram 178 Beagles em diferentes condições de saúde. A invasão não havia sido programada pelos manifestantes que, há dias, se encontravam nas imediações do prédio. Foi, na verdade, uma ação conjunta de pessoas com o propósito de salvar dezenas de animais que estavam sendo violentados no momento da invasão (informação dada pelos próprios manifestantes). 
A notícia já correu o mundo e teve grande repercussão no Brasil. Mídia, cientistas e políticos uniram-se para atacar e condenar os cidadãos envolvidos, usando toda sorte de argumentos. Basta digitar "invasão do instituto royal" na internet ou ler os jornais e revistas que publicaram matérias sobre o assunto para que o leitor tenha uma ideia da divergência de opiniões. Mas um leitor astuto vai também perceber quão revolucionário é um evento deste porte e quão importante para o exercício da democracia e da cidadania. Afinal, quantos produtos são enfiados em nossas gargantas sem que saibamos sua verdadeira origem? E se não concordarmos com as maneiras pelas quais esses produtos são produzidos? Por que somos, via de regra, impedidos de saber a verdade não só sobre os testes em animais, mas sobre o que ocorre nas granjas, na indústria da carne e do leite de modo geral, na indústria do entretenimento e na moda? Por que a UNILEVER (a qual se vinculam marcas como OMO e KIBON) não divulga na embalagem dos seus produtos ou nas propagandas televisivas quais animais foram testados, por quais métodos e quais os resultados das pesquisas? Por um só motivo: a divulgação de tais processos iria repudiar e afastar a maioria dos consumidores. Haveria, nesse caso, o poder de escolha ética e moral por parte do consumidor, que geralmente escolhe pelo preço ou pelo efeito do produto. A escolha ética não pode ser feita simplesmente porque o consumidor NÃO SABE o que está por detrás daquele batom, daquele sabonete, daquele remédio, daquele shampoo. 
Cabe lembrar, também, que, assim como a indústria da carne, cujas embalagens trazem, ouso dizer, sempre, imagens de franguinhos e vaquinhas felizes em campos verdejantes, o que veicula uma falsa ideologia a partir da crença do consumidor no bem estar destes animais, a indústria farmacêutica veicula uma neutralidade no caso de remédios e cosméticos. Ou seja, o sofrimento do animal, a dor, o sangue, as vísceras, os procedimentos cruéis a que são submetidos, JAMAIS APARECEM.
A pergunta que geralmente se faz nestes casos é “pra que servem os testes?”, “eles são de fato necessários?”, “podem nos ajudar de alguma forma?”. Creio, no entanto, que estas perguntas são, em última instância, equivocadas. Muito embora uma gama de cientistas e filósofos acredite na inferioridade dos animais não humanos em relação ao homem, inferioridade que remete a um número enorme de questões, mas que está centrada, fundamentalmente, na irracionalidade dos seres não-falantes, meu ponto, que vai ao encontro do pensamento de ativistas, pesquisadores, filósofos como Jacques Derrida e mesmo cientistas e veterinários é que TODOS OS SERES VIVENTES TÊM O DIREITO DE HABITAR O PLANETA SEM SEREM SUBMETIDOS À CRUELDADE.
Significa dizer, a relação de poder que se estabelece entre o homem e o animal não-humano e que o submete aos mais diversos tipos de violência é uma relação que tem como base o ANTROPOCENTRISMO. O homem se acha melhor, mais digno e superior em relação a um outro que pode, portanto, perder sua vida ou seu direito (se é que o tem) de viver de acordo com sua natureza. É por isso que não se injetam drogas, por exemplo, nos olhos de estupradores e sim nos olhos de coelhos. Não estou defendendo o abuso de prisioneiros, mas o exemplo é válido na medida em que expõe o fato de que, para as leis em geral, a vida de um coelho que em nada prejudicou seres humanos ou outros animais vale menos, muito menos, que a de um humano que causou sofrimento profundo e irreparável a outro. Isso acontece porque, dentro da visão antropocêntrica (que durante séculos excluiu, no ocidente, mulheres e negros) os direitos humanos prevalecem sobre o direito animal. Portanto, é errado submeter um humano a qualquer tipo de procedimento contra a sua vontade, o que poderia ser considerado um tipo de vingança, mas é correto submeter outros animais a qualquer procedimento doloroso, insuportável e até mesmo matá-lo para garantir o avanço da ciência e, claro, a manutenção do capital. Pois não devemos ser ingênuos e pensar que por detrás dos laboratórios e das pesquisas não há grande quantia de capital sendo investida e milhares de pessoas lucrando às custas desses animais e de consumidores sem conhecimento.

Mas e o avanço da pesquisa? E seus supostos benefícios para o homem? Há, hoje, muitos estudos que comprovam a inutilidade do uso de animais nos testes em geral, mas meu argumento vai além disso. AINDA QUE FOSSE INDISPENSÁVEL PARA A HUMANIDADE não poderíamos fazê-lo, pois é cruel e desumano, doentio e sádico, egoísta e patético, e tira de nós a humanidade que tanto defendemos.  A capacidade de pensar e ponderar a partir de um ponto de vista ético é própria do ser humano. Quando dada conduta, com o objetivo de atingir um fim, privilegia meios que trazem sofrimento ao outro, torna-se anti-ética e, portanto, DESUMANA, ainda que certas normas e leis digam o contrário. Afinal, a ética refere-se ao cuidado dos fracos e desprotegidos, pelo menos de acordo com o sentido original da palavra. O que se apresenta no uso de animais para testes não é uma conduta ética, mas um exercício de poder do forte contra o fraco, que se encontra submisso e dominado. Cabe, aqui, um questionamento imperioso: se tivermos em mente, por exemplo, a inclusão de mais um medicamento ou cosmético na indústria, mais uma patente ou mais um produto de limpeza, podemos imaginar que, em última instância, os efeitos dos experimentos conduzidos em laboratórios como os do Instituto Royal e o confinamento de animais sejam promissores para a comunidade científica e para a população humana, mas se considerarmos a vitimização dos animais, sua candura e inocência, o efeito é certamente deletério, porque retira de nós, homens, a humanidade e a civilidade que devem sempre nos caracterizar. Como bem pontuou o intelectual húngaro Karl Polanyi, as mudanças e o progresso podem não cessar, mas seu ritmo pode e deve ser controlado. Neste caso, se determinados medicamentos ou experimentos científicos precisam ser elaborados, que o sejam no tempo certo, que é o tempo necessário para que se descubram procedimentos científicos que não comprometam a integridade física e psicológica de qualquer animal, humano ou não. 
Por fim, quando digo que considero o evento no Instituto Royal revolucionário, remeto-me ao fato de que, para além da ideia de invasão de propriedade privada, vandalismo ou crime, a atitude das pessoas naquele momento e local aponta para uma mudança de paradigma na sociedade brasileira, mas também no mundo (se tomarmos em conta acontecimentos semelhantes em outros países). Quer dizer, há primeiramente uma tomada de consciência por parte da população no que se refere ao lugar dos animais não humanos na nossa sociedade. Em seguida, vê-se um processo de resistência a esse lugar quando ele implica o sofrimento animal. Claro que isso ainda está longe de acontecer no que se refere a abatedouros, por exemplo, mas uma revolução pode estar inicialmente focada em uma questão e expandir-se para outras relacionadas. É a mudança de paradigma que conta e que carrega o germe de uma transformação mais profunda.